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NÃO TÃO DRAMÁTICAS

junho 7, 2011

Tudo bem. Você tinha outros planos, mas eles falharam. Agora estão todos lá embaixo, misturados com os destroços retorcidos do carro que passou reto pela curva da estrada que margeia o precipício.

Precipícios são todos iguais, como destroços de carros que rolaram morro abaixo, como planos detonados, como todos os tipos de perdedores que sabem que sempre vão perder, mas não conseguem deixar de apostar a última ficha, que nunca é a última ficha, porque nunca existe uma última ficha para um perdedor convicto de sua missão.

Pois é, você acaba de acordar e descobre que não escreveu o romance da sua geração, não compôs a canção que traduz o espírito de uma época, muito menos se transformou num herói da classe trabalhadora. E, como a janela está fechada e as cortinas cerradas, você não sabe se é de manhã, de tarde ou de noite. Por isso você continua deitado, pensando que esse tipo de coisa não devia estar acontecendo de novo.

Acordar sem noção de tempo era coisa do passado, quando suas veias, seus pulmões e principalmente seu cérebro viviam entupidos de substâncias exóticas e explosivas.

Contudo, está acontecendo outra vez, bem neste momento. Mas você não tem coragem de levantar, puxar as cortinas, abrir a janela e descobrir se está claro ou escuro lá fora.

Lá fora onde?

Pois é, você acaba de perceber que também não faz a mínima idéia do que existe lá fora, seja dia ou seja noite. Isso obviamente significa não apenas que você não sabe onde está, mas também que não lembra como veio parar nesse quarto escuro onde acaba de acordar.

Você podia jurar que isso também nunca mais iria acontecer, pois era coisa de um passado que parecia cada vez mais remoto. No entanto, você acaba de acordar, de novo, sem noção de espaço.

A quase esquecida, mas muito conhecida sensação de ausência de tempo e espaço faz você começar a suar, e muito, e frio.

A imagem do carro se espatifando no abismo e se incendiando em seguida permanece bem nítida na sua cabeça. Então você conclui que deve ter sonhado com isso pouco antes de acordar.

Todas essas coisas, porém, embora assustadoras a ponto de fazer você suar frio em cima dessa cama desconhecida, nesse quarto escuro, nesse lugar que você não sabe onde é, não são tão aterrorizantes quanto estar sentindo esse peso no peito.

Você não sabe onde, como nem quando, mas tem certeza de que a sensação desse peso, aí dentro, não surgiu agora. Aliás, você também está certo de que esse peso vem aumentando lenta e progressivamente há algum tempo. Quanto tempo? Lógico, você não faz idéia, mas sem dúvida está ficando um pouco mais pesado a cada dia.

 É exatamente nesse ponto que reside o problema. Você, como sempre fez antes com coisas desconfortáveis, desgastantes e aparentemente insolúveis, poderia também acabar se acostumando com o peso, desde que ele, o peso, fosse pelo menos estável. Mas como aprender a conviver com uma coisa que é sempre maior a cada dia? Como se preparar para carregar 7,5 quilos no dia seguinte, se quando você acorda o ponteiro da balança já está bem próximo da marca dos 8 quilos?

Você compreende que, desta vez, está irremediavelmente fodido. Por isso você acha bem provável a hipótese de que esse peso dentro de você continue aumentando e aumentando e aumentando, até que, uma hora qualquer, você acaba simplesmente afundando na terra.

Pensando bem, isso não deixaria de ter algumas vantagens. Você nem ninguém, por exemplo, precisaria gastar dinheiro num caixão, nem pagar alguém pra tocar fogo no seu corpo.

Outra grande vantagem é que não haveria nenhum idiota no seu funeral discursando sobre como seria bom se você ainda estivesse vivo, mas, já que você estava morto, certamente teria ido para um lugar muito melhor do que aqui.

Uma vantagem, no entanto, superaria todas as outras: você não precisaria nunca mais conviver com a pessoa que você se tornou e que, no final das contas, foi a responsável por toda essa merda, até pelo fato de você ter ficado tão pesado que afundou na terra.

Você se livraria dessa pessoa para sempre. Isso, é lógico, se aquela gente que acredita que existe um negócio chamado eternidade estivesse mesmo totalmente errada.

Então você resolve fechar os olhos e dormir mais um pouco.

Quem sabe, quando você acordar de novo, as coisas não estarão um pouco melhores ou, pelo menos, não tão dramáticas.

2 Comentários leave one →
  1. Denis permalink
    junho 9, 2011 4:16 pm

    Show, muito bom!

  2. Eloy permalink
    janeiro 24, 2012 4:51 pm

    Se eu disser que gosei estarei repetindo, pela milésima vez, o que sempre disse sobre aquilo que você escreve. Afinal, essa lagartixa f.d.p. não larga do seu pé, né mesmo?
    O Véio Pau Dágua.
    (Agora me acordei para o fato de que a reforma ortográfica de 1942 eliminou o “apóstrofe”! D’ água, agora é dágua).

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